sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Estavas de costas


 
e eu toquei-te num ombro.
Demoraste três anos a voltar-te, o sol caía.


Joaquim Manuel Magalhães

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Bom dia



abro os olhos e desperto o dia. crio a explosão do sol cheio sobre mim. arranco-me à terra que na noite me lançou raízes e sacudo-me. separo os braços, abro o vento com as unhas. imagino um voo firme.
cumpro o corpo e outras grandes mentiras


Valter Hugo Mãe

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Hoje tenho pena



Parto com essa ferida.
Tenho pena de não ter percorrido o teu corpo como percorro os mapas (...)
Tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro.
Acordado perto de ti
as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor do teu corpo.


Al Berto

sábado, 25 de agosto de 2012

Mas dizia




um coração é sempre um pássaro
evadido à censura da penumbra


  José Tolentino Mendonça

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

?

Noites assim


 
Há noites assim não de outra coisa
que são de si mesmas cheias
até ser insuportável
até cada corpo cheirar exactamente
ao cheiro da sua alma. Há noites assim
que somos nós: Deus nos defenda
de tanta noite haver por dentro
por fora de nós mesmos.


Bernardo Pinto de Almeida

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Rendição



Deponho as armas:
 
  Primeiro a voz
Depois a luz
Por fim as mãos
 
E então posso morrer
Se não for noite.


Daniel Faria

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Post it


Direi
Que regresso do teu nome

Que desço lentamente
Pétala a pétala
A escada da lembrança.


Emanuel Félix

domingo, 19 de agosto de 2012

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Despertar


O que quero dizer é isto: estes ramos que saem da parede, e se estendem pelo muro até ao fim do quintal, trazem-me os frutos da tarde. Abro-os: os gomos húmidos dos teus lábios, as grainhas que saltam das frases, e se espalham pelo chão, a macia polpa dos dedos que procuram o sexo da noite, agora que é tarde para encontrar o caminho do regresso. E lembro-me de tudo. A lua posta nos teus seios como a branca medusa dos fundos. O beijo árido da luz que salta da janela, quando a abro, e dou com a lâmpada agonizante da madrugada. Não te acordo. Os teus cabelos estendem-se pelo travesseiro do desejo, caem da cama, estendem-se pelos rodapés da memória até ser dia, e a tua nudez saltar de dentro de mim.


Nuno Júdice

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Da invisibilidade


Às vezes escondo-me no corpo e ninguém me vê. 
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas. 
Posso até dizer algumas palavras, 
posso até exprimir-me num longo discurso, 
mas a verdade é que não falo com elas. 
Estou escondido algures no meio do meu corpo.


Gonçalo M. Tavares

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Dos estilhaços


Ainda não manejei nenhuma arma que não desse ricochete
E a cicatriz sobrevive sempre à mais perfeita ligadura ...


  Jorge Palma

domingo, 12 de agosto de 2012

Não é pedir muito


(...)
Uma caixa de cimento fresco.
 Deita-o lá dentro.
Sabes do que estou a falar.
Vermelho escuro.
 Isso.
 O coração.


Miguel Martins

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Coisas de mulher desabitada


(...)
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em volta de mim em volta de mim ... de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento.
(...)


Luiza Neto Jorge

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fogo posto


(...)
à entrada da noite
como se a luz doesse
entre o desejo
e o espasmo lentíssimo relâmpago
a mão.


Eugénio de Andrade

domingo, 5 de agosto de 2012

É outra

Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói


Ana Cristina César

sábado, 4 de agosto de 2012

De muito longe


Deitou-se a meu lado.
Disse que vinha de longe e tinha sede.
Bebemos pela mesma taça.


Albano Martins

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance de um poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


Antonio Cícero