quarta-feira, 29 de maio de 2013

As manhãs


as manhãs começam logo com a morte das mães,
ainda oito dias antes lavavam os cabelos em alfazema cozida,
ainda oito anos depois os cabelos irrepetíveis,
todas as luzes da terra abertas em cima delas,
e então a gente enche a banheira com água fria até ao pescoço,
e tudo brilha na mesma,
brilha cegamente



Herberto Helder  (Servidões)

terça-feira, 28 de maio de 2013

Afinador de silêncios



Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.



Mia Couto

sábado, 25 de maio de 2013

Foi assim


 
Foi costurando pássaros dentro de mim
que me tornei uma gaiola
 
 


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Definitivamente


Como se da boca de um louco, há muitos anos desprovido de razão, saísse de súbito uma fórmula verbal capaz de explicar finalmente o mundo, certos encontros do acaso juntam, definitivamente, e depois de muitos anos de desespero e desencontros, um homem e uma mulher.



Gonçalo M. Tavares

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A minha vida


Nunca busquei viver a minha vida
A minha vida viveu-se sem que eu quisesse ou não quisesse.
Só quis ver como se não tivesse alma
Só quis ver como se fosse eterno.




Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Sobre a cegueira estar cega


Por que foi que cegámos?
 Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão.
Queres que te diga o que penso?
(...)
 Penso que não cegámos, penso que estamos cegos,
Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.
 



José Saramago
 (Ensaio sobre a Cegueira)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Acordar um dia


Acordar um dia do outro lado do dia. Ter alguém à minha espera e uma certeza de caminho nos pés.
Alguém que fuja comigo para fora de mim, capaz de roubar-me às tantas voltas que dei sem nunca sair daqui.
  Um corpo curto de braços e apertado no peito, uma casa onde moro e onde não mora ninguém.
Livros em cima de livros em cima de livros em cima de mim.
Alguém que me faça disto alguma coisa, que traga cheiros e palavras com sangue dentro. Alguém que empreste só para eu poder pagar, com juros altos e impossíveis, numa dívida em que me enterre até ao Fim.



Nuno Camarneiro
(descaradamente roubado no blog dele)

domingo, 19 de maio de 2013

A cor do sangue


Uma lâmpada acende-se
em pleno dia. A luz
é verde, casualmente
azul, às vezes
amarela, vermelha.
Às vezes, não;
 sobretudo vermelha.
A cor dos miosótis
e do sangue.



Albano Martins
(Foto de  Robert and Shana ParkeHarrison)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A mais certa certeza


Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite. É verdade que te podia Dizer “ Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos apenas dentro de nós próprios?” Mas ensinaste-me a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor, ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo ele que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar: com a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu: a primavera luminosa da minha expectativa, a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
 

Nuno Júdice

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Dentro da pele



Tornamo-nos impermeáveis na solidão:
dentro da pele não viaja ninguém;
fora da pele ninguém nos vê passar.




Jesús Jiménez Domínguez

quarta-feira, 15 de maio de 2013

E chamem-lhe vida


Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
 
Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.



José Gomes Ferreira
(Foto de Katia Chausheva)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Liquidação


A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.



Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Dos dias


Igual aos deuses (com pouco me contento),
de livros e de silêncio me alimento.
 


Manuel António Pina

domingo, 12 de maio de 2013

Uma rapariga de fogo ao peito


(...)
 
ANA é isto.
Isso.
A língua quase não se move. É um nome muito tranquilo. Pacífico mesmo.
Para dizer ANA com força é preciso estar-se muito zangado. Normalmente
move-se
apenas a língua levemente dentro da boca. Não é preciso muito mais
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...



Ana Hatherly

sábado, 11 de maio de 2013

A sombra dos dias


As lágrimas
são locais de olhar por dentro
e enquanto espero que os verbos
sequem
poucas palavras me restam para dizer
que só a sombra tem corpo
e em frases soltas
crescem-me pássaros no reverso dos olhos.



Maria Sousa

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A tua nudez inquieta-me


Há dias em que a tua nudez
  é como um barco subitamente entrado pela barra.
  Como um temporal.
Ou como certas palavras ainda não inventadas...



Fernando Assis Pacheco

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Dueto


Se eu fosse Deus - a mais indigna
das profissões -, convidava
Tom Waits para completar este dueto.
Pois o vento, já se sabe, empurra-nos
sempre para a morte



  Manuel de Freitas
 
 
 
 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Toma


este é o meu corpo, o que sobe as escadas
  em direcção à tua escuridão...
 


Manuel António Pina

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O duplo


Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
- que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
- que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
- e alguém calado que grita.



Affonso Romano de Sant´Anna

domingo, 5 de maio de 2013

A mãe


Quando o pirilampo morreu
  O homem disse: fiquei cego
  Mesmo continuando a ouvir os ralos
  Não acharei o caminho para casa
Tinha roubado um pára-raios velho
  E pondo-o à cabeça esperava
 
A mãe



Daniel Faria

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Um lugar ao sul


É um lugar ao sul, um lugar onde
a cal
amotinada desafia o olhar
(...)


  Eugénio de Andrade