terça-feira, 23 de dezembro de 2014

É Natal



É Natal, nunca estive tão só. 
Nem sequer neva como nos versos 
do Pessoa ou nos bosques 
da Nova Inglaterra. 
Deixo os olhos correr
 entre o fulgor dos cravos
 e os dióspiros ardendo na sombra. 
Quem tem assim o verão 
dentro de casa
 não devia queixar-se de estar só, 
não devia.





 Eugénio de Andrade
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sem saber



Cai um sino do pinheiro de natal. 
Por muito menos se foge de casa 
de seus pais. Agachados sob o leque
 das hortênsias, descobrimos que as lágrimas
 são fáceis de engolir. Sem saber,
 já chegamos ao escuro. 
Só nos falta pôr o til na palavra solidão. 





 José Miguel Silva
 (Foto de Nishe)

domingo, 21 de dezembro de 2014

O dia mais curto



Acordámos com o céu encostado
 no ouvido, nuvens que ladravam e mordiam
 o domingo, a partir do alto das montanhas 
E aqui continuamos, agarrados a nós próprios, 
como dois miúdos que não têm para onde ir. 
Estamos presos ao sofá unicamente porque sim, 
nem tristes nem alegres, metidos no roupão 
e nos chinelos, pequenos cadeados de trazer
 por casa. O mundo, esse, vem buscar-nos 
amanhã. Bate-nos à porta, à hora do costume, 
palitando os dentes com a ponta da navalha. 





 Vítor Nogueira

sábado, 20 de dezembro de 2014

Perdas e danos



O amor me fere é debaixo do braço, 
de um vão entre as costelas. 
Atinge meu coração é por esta via inclinada. 
Eu ponho o amor no pilão com cinza
 e grão de roxo e soco. Macero ele, 
faço dele cataplasma
 e ponho sobre a ferida. 





 Adélia Prado
(Foto de Laura Makabresku)








sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Dos dias



O musgo de presépio secou-te entre as pernas
 foram-se os natais que te iluminavam
 também as minhas palavras
 estão cansadas
 exauridas. 





 Carlos Alberto Machado
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014




em vez de cortar os pulsos
 cortei a linha do telefone. Já não acordo de noite
 para lhe perguntar por que não tocas. 




 José Miguel Silva

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014




e eu nem sei, 
 neste rumor de tudo quanto amei, 
 se a luz madrugou ou chegou tarde 




 Eugénio de Andrade

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Espelhos



e só agora penso: 
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
 mesmo? 
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
 ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso. 
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
 - cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados
 pelo fundo e amargo espelho velho: 
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente 
o mesmo 





 Herberto Helder
(Foto de Katia Chausheva)

domingo, 14 de dezembro de 2014

Metáfora



Escolho o silêncio assunto antigo para
falar deste domingo: descrevê-los 
o silêncio o domingo será como
 falar da escuridão e que metáfora
 mais certa se as há certas, para a ínfima
 luz própria metafórica do dia 
 A tua voz então vem como nave
 a si mesma sulcar-se, na penumbra
 tornando-se, não sei se mais igual 
ou mais diversa do escuro sentido
 do sentido,o tema interrompendo
 do poema: o silêncio o domingo 





 Gastão Cruz
 (Foto de Katia Chausheva)

sábado, 13 de dezembro de 2014

Dos estilhaços


As meninas armadas são as mais belas,
 têm no coldre uma arma
 lotada de munições, 
pronta a ser sacada em inúmeras situações. 
As meninas armadas não fazem rimas 
Dão tiros nos poemas
 e mandam autopsiar o corpo para reaverem as balas 





 Cláudia Lucas Chéu

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Fragmentos para dominar o silêncio



estranha que fui 
quando vizinha de longínquas luzes 
acumulava palavras tão puras 
para criar novos silêncios 




 Alejandra Pizarnik

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014




nunca há relógios certos para o tempo 
de quem nos abandona 




 Alice Vieira

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Papoilas



E eu disse que havia de levar-te flores. 
E tu perguntaste-me: «Quando?».
 E eu respondi: «Quando morreres». 
E tu fizeste: «Ah!». 
E eu disse que havia de levar-te flores, e disse também: «Papoilas». 
E tu disseste-me que era melhor não pensar nisso. 
E eu disse-te: «Porquê?». 
E tu disseste-me: «Porque sim».
 E eu disse: «Bom». E depois perguntei-te se nos íamos encontrar no céu mais tarde. 
E tu respondeste-me: «Sim». 
E eu disse: «Ainda bem».
 Sim. 





 Fernando Arrabal
(Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014




O vento é um pedaço de oxigénio disfarçado de fantasma,
 que vagueia a assobiar uma canção que nunca passa de moda. 




 Alejandra Pizarnik