segunda-feira, 23 de outubro de 2017

como poderíamos não nos ter perdido?




Não valia a pena esperar, ninguém viria 
que nos segurasse a cabeça e nos pegasse nas mãos,
 estávamos sós e essa solidão éramos nós;
 e era indiferente sabê-lo ou não,
 ou gritar (ou acreditar), porque ninguém ouvia: 
o grito era a própria indiferença. 
 Presente, apenas presente;
 a memória, presente, 
a esperança, presente.
 E, no entanto, houvera um tempo
 em que tínhamos sido talvez felizes,
 quando não nos dizia respeito a felicidade, 
 e em que tínhamos estado perto 
de alguma coisa maior que nós 
ou do nosso exacto tamanho. 
 Como um animal devorando-se
 por dentro a si mesmo,
 consumira-se, porém,
 o pouco que nos pertencera, os dias e as noites, 
a certeza e o deslumbramento, a cerejeira e a
 palavra “cerejeira” ainda em carne na jovem boca. 
 Nenhuma beleza e nenhuma verdade que nos salvasse, 
nenhuma renúncia que nos prendesse
 ou nos libertasse, nenhuma compaixão que
 nos devolvesse o ser
 ou o mesmo, 
ou fosse a morada de algo inumano como um coração.
 Nenhuns passos ecoavam no grande quarto interior,
 nenhumas pálpebras se abriam, 
como poderíamos não nos ter perdido? 
 Entre 10 elevado a mais infinito
 e 10 elevado a menos infinito, 
uma indistinta presença impalpável na indiferença azul, 
 sós, 
sem ninguém à escuta, 
nem a nossa própria voz. 






 Manuel António Pina
 (Foto de Cristina Coral)

domingo, 22 de outubro de 2017

quarta-feira, 18 de outubro de 2017




As frases ditas no amor 
guardo-as como sementes
 para dar de comer à fome antiga
 perene e insaciada
 quando chegar o inverno 






 Adelaide Amorim

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

casa




Quando o ser da luz for
 o ser da palavra, 
 no seu centro arder
 e subir com a chama
 (ou baixar à água)
 então estarei em casa. 






 Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de outubro de 2017




Nunca encontrei mulher mais cobarde do que eu.
 Recapitulo: mulheres que estão à espera como eu, 
 não, nenhuma é assim tão cobarde






 Marguerite Duras
 (Foto de Saul Leiter)

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

aquiles





( tu não fazes a barba
 e eu não sei onde guardei o manual de sobrevivência
 das minhas secretas fragilidades)






segunda-feira, 9 de outubro de 2017

o amor é para os parvos




Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Não porque não te amasse, ou porque não me quisesses tu. Simplesmente tinha de acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu gosto-te, tu gostas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos.







 Manuel Jorge Marmelo

domingo, 8 de outubro de 2017

estou afinad(a)




(...) 
 Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro. 
 A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho.
 Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras.
 O formol é para os Deuses. 






 Miguel Martins

terça-feira, 3 de outubro de 2017

– socorro –




Não ter um Deus 
não ter um túmulo
 não ter nada de certo
 mas apenas coisas vivas que nos fogem – 
existir sem ontem
 existir sem amanhã
 e cegar no vazio
 – socorro – 
pelo sofrimento 
que não tem fim – 






 Antonia Pozzi
 (Foto de Anna O)

segunda-feira, 2 de outubro de 2017




Tudo o que te disser 
 tudo o que escrever 
 sou eu a perder-te







 Manuel António Pina